terça-feira, 20 de maio de 2014

Entrevista — Pedro Demo



Pedro Demo é dos mais respeitados nomes do pensamento brasileiro. Cursou Filosofia e é Doutor em Sociologia a pela Universidade de Saarbrücken, Alemanha, e pós-doutor pela Universidade da California. É professor titular aposentado e professor emérito do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Com mais de 80 livros publicados, Pedro Demo desenvolveu o interesse pela causa dos professores básicos desde o final dos anos 1980, por entender que, em parte pelo menos, a cidadania popular depende da qualidade de sua atuação e formação.Assim, aproximou-se da sociologia da educação, área em que pesquisa e publica até hoje intensamente, sempre destacando o vínculo estreito entre educação e combate à pobreza política. “Este tipo de atividade teórica e prática tem como razão maior de ser aprimorar a educação básica, em especial a escola pública, por ser esta uma das arenas mais sensíveis da qualificação da democracia. Inspira-se na tese de que aluno aprende bem com professor que aprende bem. É imprescindível que o professor tenha oportunidade de estudar, pesquisar, elaborar, tornando-se autor, sem falar no desafio de dar conta das novas tecnologias e novas alfabetizações”, afirma. Confira a seguir algumas das ideias de Pedro Demo a respeito da educação.
DireciCIONAL EDUCADOR – O senhor fala em uma educação reconstrutiva e não instrucionista simplesmente. Pode definir melhor o termo e explicar sua relação com o construtivismo?
PEDRO DEMO - Como não adoto nenhuma teoria especificamente (uso todas reconstrutiva e criticamente), chamo de aprendizagem reconstrutiva aquela que cultiva a habilidade de construir conhecimento com autoria e autonomia. Instrucionismo é o contrário: reprodução copiada de conhecimento através de aulas copiadas feitas para serem copiadas, em geral com base em apostilas.
As escolas, especialmente as particulares, utilizam como ferramenta de marketing e de divulgação seu método de ensino, construtivista ou outro. Que importância o senhor dá ao método adotado pela escola?
Método oficial não pode existir, porque, sendo aprendizagem fenômeno de extrema complexidade, não se faz por “um” método. É bem melhor apostar na competência do professor de elaborar sua proposta (em certo sentido, seu método) e continuar sempre testando e retestando, reconstruindo, dentro da expectativa da aprendizagem permanente docente. Sacralizar método é sugerir que professor é apenas marionete, como ocorre facilmente nas apostilas. Existem muitas querelas inócuas e inúteis a respeito. Muitos “construtivistas” não sabem do que se trata. Outros que se agarram ao “método fonético” repõem o instrucionismo. É importante que cada professor pesquise e elabore sua proposta, tendo como critério fatal a aprendizagem do aluno: se o aluno não aprender bem, o método não adianta nada.
E em relação ao uso de material didático, livro ou sistema de ensino apostilado, qual sua opinião? Como deve ser a relação do professor com o material utilizado?
Entendo que apostila é a canonização de conhecimento estabilizado, esperando-se que o professor a reproduza. Primeiro, assume- se que professor é tão desvalido que precisa de script pronto e imutável. Segundo, sugere-se que conhecimento é pacote pronto, ignorando-se que é dinâmica desconstrutiva e reconstrutiva, em ebulição permanente. Terceiro, ignora-se que conhecimento precisa ser feito e desfeito, permanecendo sempre aberto, como ocorre na wikipedia e suas “novas epistemologias”.
O senhor defende a pesquisa associada ao ensino. A pesquisa deve ser estimulada pelos professores até mesmo entre as crianças pequenas (Educação Infantil e Ensino Fundamental 1)?
Defendo pesquisa associada à “educação”, não “ensino”. O espírito da pesquisa começa ao nascer, com a curiosidade da criança, a necessidade de confrontar-se com a realidade, com o desafio de ordenar mentalmente (esquemas de Piaget) o mundo em que se vive. Ressalta-se, nestas fases iniciais, o lado mais pedagógico da pesquisa, tendo em vista aprimorar a capacidade de argumentar (não o argumento de autoridade, mas a autoridade do argumento), de elaborar textos próprios, de cultivar autoria e autonomia.
A pesquisa deve acontecer no cotidiano da escola e também fora da escola, em atividades do tipo lição de casa? Qual sua opinião sobre a obrigatoriedade da lição de casa?
A pesquisa deve ocorrer dentro e fora. A lição de casa continua importante, se for tarefa de pesquisa, não de reprodução instrucionista. É importante que, em casa, o aluno continue “antenado”, com apoio da família. Bom ambiente de estudo em casa tem grande in- ‑uência na qualidade da aprendizagem. Acresce a isso a argumentação em torno da “educação científica” (em todo mundo): preparar a criança para dar conta das habilidades do século XXI, em especial construir conhecimento próprio, individual e coletivamente.
A brincadeira pode ser considerada uma forma de pesquisa do mundo para os pequenos?
Pode ser, sob orientação do professor. Nem toda brincadeira, mas aquela orientada pelos desafios de autoria e autonomia frente ao conhecimento. O mundo lúdico é essencial para o desenvolvimento da criança e não poderia simplesmente desaparecer na escola. Ao contrário – como mostram os ‘bons’ jogos eletrônicos, motivação é fundamental.
Os cursos de Pedagogia incluem formação para o professor neste sentido, de estimular a pesquisa em seus alunos, nas mais diversas faixas etárias?
Os cursos de Pedagogia, com raras exceções, são péssimos. Não produzem profissionais que saibam realmente alfabetizar, “ler” os desenhos infantis, pesquisar e elaborar. Os professores não têm “culpa” – são apenas vítimas de um sistema encardidamenteinstrucionista. Esta crítica não elide o reconhecimento de que Pedagogia é o curso mais estratégico da universidade, porque define o que é aprender.
Há uma queixa dos professores da educação básica de que os teóricos estudam a educação sem pisar no chão da sala de aula, que desconhecem a prática e por isso não têm condições de teorizar. O que pensa dessa questão?
Em parte é verdade. Mas isto não cabe, por exemplo, com Piaget e Vygotsky, só para citar dois importantes. No Brasil há muitos “teóricos” – que por isso não são “teóricos” no sentido adequado – que não enfrentam na prática os problemas que teorizam: não trabalham aprendizagem concretamente, não lidam com professores e seus problemas mais variados (em especial má formação e maus salários), não montam cursos e outros expedientes de formação continuada, não avaliam e promovem procedimentos de acompanhamento de aluno por aluno, não ensaiam experiências de “um computador por aluno”, etc.
“Currículo não é grade, é oportunidade flexível e aberta.” Essa frase é do texto Currículo, publicado em seu blog. O senhor acredita que os Parâmetros Curriculares Nacionais, ao proporem temas transversais, concordam com sua ideia de que devemos mudar o currículo tradicional para um currículo aberto?
Os Parâmetros Curriculares representaram um esforço meritório, tanto em termos de ‑exibilização, quanto em termos de atualização na discussão curricular. A questão maior, porém, não está no currículo como tal (em geral atrasadíssimo, uma autêntica “grade” prisional, como diria Foucault), mas no desafio de o professor saber lidar com a proposta curricular. Professor mal preparado copia e reproduz currículo; professor bem preparado reconstrói o currículo, porque isto corresponde à dinâmica do conhecimento.
O senhor acredita na escola em tempo integral como uma solução para os problemas da educação brasileira?
Acredito muito, também porque trabalhei esta ideia com Darcy Ribeiro por longos anos. Erramos e acertamos. Hoje, entendo que o móvel principal da Escola de Tempo Integral são os professores – uma escola diferente só se faz com professor diferente. Grande maioria dessas escolas, atualmente, apenas alonga o tempo de aula – uma inutilidade homérica. Quando consigo unir nesses experimentos, proponho uma preparação de um semestre para os professores, antes de a escola funcionar. Ao mesmo tempo, sugiro suprimir a “aula instrucionista”, e colocar em seu lugar “tempo de estudo” (de hora e meia), meticulosamente construído pelo professor, quatro por dia, marcado por pesquisa e elaboração, tendo como resultado, a cada tempo, texto dos alunos. Tais textos serão, ademais, referência crucial da avaliação.
Que importância tem a tecnologia hoje na escola, ou deveria ter?
Fatal! Todos os alunos precisam disso no futuro próximo. Tecnologia não é mais apenas meio. É também “alfabetização” e plataforma de interação/comunicação. Não segue daí determinismo tecnológico – pode-se aprender bem sem tecnologias. Mas o mundo de hoje é visceralmente tecnológico – sem habilidades tecnológicas não é possível dar conta dele. A escola, em geral, continua no mundo da lua! A Pedagogia precisa abraçar esta causa, também para mostrar como se lida com ela “criticamente”.
O senhor viu avanços nas ações propostas pelo governo federal através do PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), em 2007?
Muito pouco avanço, porque não se toma a sério a questão docente. Ainda se acredita que melhorar a escola é aumentar o tempo de aula. As remunerações foram melhoradas, mas infimamente (salário de mil reais por uma semana de 40 horas é um acinte). As universidades continuam produzindo a mesma Pedagogia e as mesmas licenciaturas, todas medievais. A qualidade da aprendizagem depende (não só) sumamente da qualidade docente e esta percepção ainda não chegou à prática escolar.
Para encerrar, em sua opinião qual a grande questão hoje na educação brasileira?
O grande desafio é a valorização docente. Toda mudança escolar é, no fundo, mudança docente. Professor é profissional estratégico desta quadra histórica. Sua qualidade molda a qualidade que esperamos desses tempos. Por isso a escola continua importante, por mais que se multipliquem ambientes não formais fora da escola (em geral por conta das novas tecnologias). Mas o desafio maior é cuidar dos professores.
http://direcionalescolas.com.br/2014/01/09/entrevista-pedro-demo/


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